Publicado há cerca de três décadas, o livro "Síndrome de Peter Pan" mostrava um novo padrão de comportamento social para a época. Seu autor, dr. Dan Kiley, simplificou algumas ideias de Jung, usava o personagem de ficção como parâmetro de um grupo cada vez maior de adultos que não abriam mão de seus privilégios adolescentes.
Peter Pan, para quem não leu o livro nem se lembra da versão da Disney, é um menino que se recusa a crescer. Dotado de poderes mágicos e de uma fadinha de estimação, vivia com "garotos perdidos" na Terra do Nunca, um eterno playground.
A tal síndrome descrita pelo dr. Kiley não era exatamente uma doença, mas um desvio de comportamento de quem cresceu em ambiente de superproteção e que, confrontado com a dura realidade das escolhas cotidianas, preferia se refugiar em ambiente conhecido. Como a criança que ao fechar os olhos se julga invisível, esses adultos entravam em uma espécie de negação primitiva, criando uma bolha em torno de si.
Entre as características dos "Peter Pans" estariam relutância em assumir responsabilidades, cuidado excessivo com a aparência, envolvimento compulsivo em atividades lúdicas e baixa autoconfiança.
Morto há dez anos, Dr. Kiley não viveu o suficiente para ver a condição que definiu transformada em pandemia. Seria interessante ouvir sua opinião em meio a tantas teorias rasas propostas por analistas de tendências, publicitários e antropólogos de aluguel em geral.
Quaisquer que sejam as origens de tanta imaturidade --popular nas piadas machistas dos programas de "humor", no egoísmo de empresários e políticos, no narcisismo de atores e web-celebridades, na futilidade das redes sociais e na alienação geral de praticamente todo mundo--, um fator é inegável: a natureza das mídias digitais, se não causa, certamente estimula esse tipo de comportamento.
"Selfies", check-ins, "badges", Tinder, buscas pelo próprio nome e competições por "curtidas", amigos e seguidores não teriam nada de errado se fossem produtos de nicho, encarregados de manifestar uma fase de exceção marcada pela insegurança. Quando se transformam em regra é natural que demandem análise dos meios por que circulam.
Boa parte das tecnologias de consumo tem a cara de seus donos, a maioria homem, jovem e rico, se beneficiando de uma cultura que fetichiza a juventude. Há pouquíssimos apps para os menos favorecidos e, incrivelmente, para qualquer mulher que não esteja obcecada por sexo, compras, decoração ou moda.
Boas ideias, mesmo quando surgem, acabam rechaçadas por uma panelinha de investidores que considera mulheres (50% do planeta) e pobres (99%) mercados de nicho.
O resultado dessa triste miopia se reflete no estímulo a um comportamento machista, ingênuo e misógino da "cultura geek". Pessoas levemente deprimidas, insatisfeitas e misantropas, que fazem da tecnologia o tema central de suas vidas e buscam sempre a última novidade podem ser bons consumidores, mas não são seres humanos exemplares.
A tecnologia, que sob tantos aspectos é um dos setores mais avançados da sociedade, guarda em si uma infantilidade patológica. Enquanto não nos livrarmos dela, o futuro não será tão bonito como prometem romances adolescentes.
Luli Radfahrer
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